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terça-feira, 7 de maio de 2013


CONTO: Pintando um horizonte


Pintando um horizonte

Eu tenho habilidade de fazer histórias tristes
Virarem melodia vou vivendo o dia-a-dia
( Chorão/Charlie Brown Jr/ Música:Senhor do tempo)
Não se pode escrever nada com indiferença.

            Seus olhos tão azuis. Azuis da cor do mar. É um clichê comparar a cor dos teus olhos ao mar? Que seja! A Vida é um clichê dela mesma que ultrapassa o senso comum, o entendimento mais entendido e, com seus clichês, nos surpreende. A morte não é um deles? A vida...ah, a vida...
            Teus passos são igualmente azuis na minha memória, agora. Tua vida tinge de cores os nossos dias afora nas pequenas e grandes lembranças.
            A menina que você é faz ver minha própria infância. Os filhos fazem isto, sim! Mas sou seu pai, sua mãe é sua mãe e você nossa criança, nossa obra; uma obra da vida em cores, esboços, desenhos, palavras como pinturas, quadros.
            Teus olhos no horizonte nos sorriem enquanto escrevo. Eu sorrio de volta. Tua lembrança é boa e doce. E me faz te querer aqui. Distraio-me da tristeza que pode acompanhar tal pensamento para reunir: cartas, desenhos, bilhetes, conversas virtuais, um conselho, a educação passada diariamente, as trocas, as pequenas queixas, decepções, carinhos, cuidados: o amor entre pais e filhos. Agora, tudo isso é nossa história em balanço afetivo- concluo- com o peito repleto de afeto. A saudade a invadir...O esquecimento não tem vez. Não pode ter, diante do amor com que nos amamos.
            O dia de tua partida: um descuido?  Não, mas uma fatalidade como acontecimento inexprimível, entre a perplexidade e a dor da constatação da perda: uma realidade dura; cruel.A cena com que me deparo, aconteceu. Você, a banheira e o banheiro de ar irrespirável... Mas antes de me dar conta disto, minha agitação por instantes, já sem possibilidade de ajudar, de fazer algo, diante do que nos pegou, e pega a todos nós, sempre, independente das condições em que chega, desprevenidos, pensa em fazer algo, para logo em seguida, saber ser vã qualquer tentativa.
            A morte como surpresa estarrecedora. Eu, ali, pequeno, impotente, mais que fragilizado, sinto-me ultrapassado por uma lança do destino que me cinde em dois. De um lado um pai com a disposição para que fazer, se pudesse, o que fosse preciso para salvar-te, caso isto fosse possível, desejoso do impossível, de um golpe de sorte que te livrasse do mal, e, de outro lado, um ser desamparado, diante da perda e marcado, de antemão, por uma dor que passaria a morar em mim (a dor que não deve ocupar o lugar que é seu em nós!).
            Vejo você. Seus olhos miram o nada. A cor da água onde você está é transparente como eles. Não lembram o azul de antes. Você não está no mar. As águas são outras. Não há brisa ou sol. Tudo é artificial: o ar, o calor, a água aquecida. E tenho que te salvar, ainda assim. Te retiro da água. Te devolvo ao azul.
            Neste instante, estamos eu, você e sua mãe diantes de uma praia. O coração do mar se abre para nós. As ondas são calmas, com vento bom e ameno; você caminha na areia. A espuma das ondas acaricia teus pés. Teu rosto recebe o calor aquecido de um sol que te imprime vida à face. Você fecha os olhos e sorri. E eu sinto que estamos onde éramos para estar, juntos, no lugar que você escolheu.
            Você, então, caminha em direção às ondas dando-nos as mãos, de olhos fechados. Os três estão, entre a água, a areia e o sol. Você solta, por um instante, nossas mãos para um mergulho. E quando se levanta, teus olhos são novamente o mar.
            O que vivemos juntos, cada passo teu, agora lembrado, tem esta cor do céu, do mar, dos seus sonhos, do nosso lugar. E no horizonte, como tela, esses contornos, essa configuração de azul que nos une, para sempre, em amor, entre lembranças e saudades, e, como conforto, teu sorriso impresso nele.
A. Ferreira.

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