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quinta-feira, 13 de junho de 2013

Pequenas crônicas: A DITADURACRACIA-POLVO - QUE SER É ESTE?

           Pequenas crônicas:

                                   A DITADURACRACIA-POLVO - QUE SER É ESTE?
         O PODER NÃO TEM FORMA, ESTÁ ESPALHADO POR AÍ? 
OU NADA NUM MAR INFINITO, QUE SE RENOVA, MAR HISTÓRICO COM SEUS MISTÉRIOS E SERES?
               

              O que vem a ser a ditaduracracia-polvo?
            Estamos vivendo um momento, porque  não chamar assim, de ditaduracracia globalizada sob o signo da democracia que não é real, não é vivida como direito, mas é paliativa, dada a conta gotas, como um acesso à cidadania, humanidade, direito à vida,respeito aos seres e natureza, que nos acomoda, sendo permissiva-repressiva,ou seja, só podemos ir até onde a repressão permite!
            As meninas do Pussy Riot [1]que o digam! E todos nós que tivemos este exemplo de como não desafiar o sistema através de: ...uma performance musical!!!
            A ditaduracracia teme a arte!Mas não chama a arte de arte: silencia quem a pratica em termos políticos estéticos, com a sentança: “ o que você faz é político, é contra o poder da ditaduracracia, então cale-se!”, simples assim, sem poesia, mas com muita violência implícita ou explícita.
            A ditaduracracia é aquilo que músicos como o Renato e o Cazuza cantaram em canções, friso, poesia-musica; é La Maison Dieu e  Burguesia.Renato/LegiãoUrbana canta:

Eu sou a pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
O general que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente
De todos os desaparecidos
Os choque elétrico e os gritos
- Parem por favor, isto dói
Eu sou
Eu sou
Eu sou a tua morte
E vim lhe visitar como amigo
...
Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de merda
Não, nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém
Abra os olhos e o coração
Estejamos alertas
Porque o terror continua
Só mudou de cheiro
E de uniforme
Eu sou a tua morte
E lhe quero bem
Esqueça o mundo, vim lhe explicar o que virá
Porque eu sou
Eu sou. 

( La Maison Dieu - Legião Urbana. Disponível em: http://letras.mus.br/legiao-urbana/1972906/)

            A ditaduracracia é a casa de Deus na Terra: um poder que se quer absoluto:ditatorial! Poder de quem manda, apenas.Não dá voz, post, não deixa falar,não admite manifestações contrárias a ela, nem a arte contra ela,por isso aniquila a cultura para uma mais fácil dominação e manuipulação.Poderes são tão abstratos como divindades? Não! Embora pareçam. Vejamos:
            A burguesia: o substatro único e privilegiado desse poder totalizante assume muitas formas, mas será sempre 'burguesia'! Substrato burro-perverso,egoísta e covarde porque formado de seres, como na música do Cazuza, que só pensam em lucro, impedem a poesia gerando a violência e a guerra:

A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia
...
 a burguesia é a guerra.

(Burguesia - Cazuza. Disponível em: http://letras.mus.br/cazuza/43858/ )

            Somos seres de linguagem, animais e pensantes, criativos... diante de um mundo que não aceita o pensamento, o dizer, as variadas opiniões e ainda arrefece o poder totalizador com justificativas as mais torpes para tal, ainda, e já, em pleno século XXI. Cada vez mais difícil convencer que as desigualdades e injustiças sociais são justificáveis: mas não desistem.Tentam nos enganar. Quem acredita?
            Quem não, está criando um mundo novo, subterrâneo, do centro da Terra como em Outroso[2], mas com mais cautela, desde que presenciamos a descarada desfaçatez imperialista através do assassinato de Carlo Giuliano durante o G8, há  um pouco mais de uma década.
            De lá para cá foi preciso nos reinventarmos na luta; alguns perceberam.[3]As Riots são exemplo disto; exemplo geracional e consciente do momento. Momento de: mentiras, traições, arranjos; política e religião torpe, guerra psicológica midiática, corporal-fisica mutiladora: contra a saúde, tóxica-alimentar, ou, com gás lacrimogênio, spray de pimenta, bala de borracha, bomba de efeito moral, taser; contra o corpo e a mente; contra as ideias contrárias, contra o que discorda, mexe com o  estabelechiment, momento que não começou neste momento, que tem lastro na história.
            O ser humano deixa lastros históricos . A DITADURACRACIA-POLVO deixa estragos.
            O lastro...o polvo deixa lastro no mar?
            Culpa do polvo?
            O poder da ditaduracracia fala pelo povo, não  lhe da voz, dá ordens a cumprir, impõe ordem, isto é, repressão, e gera caos, se parece com um polvo,mas nunca com o povo, e não é o animal inteiro é apenas um tentáculo. Forte, poderoso, mas o animal polvo, diferente da ditaduracracia e como ela se ostenta, tem mais a ver com o povo: somos muitos! 99% contra 1/% , nos ensinou os protestos Occupy[4]Wall Street, mais recentemente.
            Aqui, contexto Rio/ Brasil, que é onde estou e falo: parece que tenho uma sensação, uma vontade de dizer a todos os vizinhos algo parecido com a canção do Chico:
Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
...
Muita mutreta pra levar a situação. 

( Meu caro amigo -Chico Buarque. Disponível em: http://letras.mus.br/chico-buarque/7584/ )

            Não bastasse a corrupção que saqueia o país, novamente, nos movimentos sociais a ditaduracracia  enfia seus tentáculos: policiais à paisana sem disfarçar, mas, legitimando a infiltração. Cadê democracia? Acho que você ainda é utopia, suspeito que você seja suspeita de não existir, ou ser uma farsa,ou, então, algo por construir.
            E os amigos? Os amigos são identificações! Num contexto globalizado opressor, sufocante, só conversas são capazes, mesmo à distancia de unir para a luta.A força da internet: “O “post” é voz que vos libertará, Descendentes tantos insurgirão...”,  diz a canção de O Teatro Mágico, "Amanhã será":

Quando uma comunidade viva!
Insurrece o valor da Paz,
endurecendo ternamente!
Todo biit, byte , e tera...

será força bruta a navegar,
será nossa herança em terra!

Amanhecerá!
De novo em nós!
Amanhã, será?

( Amanhã será – O Teatro Mágico- Disponível em: http://letras.mus.br/o-teatro-magico/1958204/)

            Mas tenho vontade também de dizer outras coisas; perguntar: não temos camaradas, caros amigos; a massa é uma dispersão virtual globalizada que, ora sim, ora não, se junta? (Sim e não...nossos tempos! ).
            E quando se junta pode fazer um amanhã diverso, com sol e mar colorido, do rosa feminista, do arco íris homoerótico-afetivo, das tintas indígenas, da aquarela das crianças, da cor flics de Ziraldo, da diferença, enfim...  um mundo não por sonhar, apenas, mas por  ser transformado.
            Na década de 90 com os zapatistas ouvimos um grito: "Ya Basta!" e fechando o medo de não passarmos de 2012, não pela ameaça capitalista-imperialista globalizada, mas por uma profecia,  novamente a clareza de luta, a la Zapata, vinda do México dizia com sua marcha do silêncio[5]:

Escutaram?
É o som do seu mundo desmoronando.
É o do nosso ressurgindo.
O dia que foi o dia, era noite.
E noite será o dia que se tornará o dia.
Democracia!
Liberdade!
Justiça!
Das montanhas do Sudeste Mexicano
Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral do EZLN
Subcomandante Insurgente Marcos
México, Dezembro de 2012 


            E, ainda agora, outra forma, com Anonymous  caso se entenda que a mascara é o de menos, o que importa é o que esta sob ela, em ideias e ideiais de justiça.
            Então é possível pensar e imaginar que, embora a “cracia”, poder da mão do polvo, que não é polvo, e está em mãos erradas, punhos fortes e cerrados podem surgir de um lado ou de outro, do mesmo polvo, para lutar por um hoje-amanha-futuro diferente. Utópico? Utopia deixou de ser artigo de luxo de sonhador, deveríamos admitir ser necessidade vital (consciente) do ser humano:  a natureza, a  água, o calor... nossa existência depende da não exploração, de dizer já basta de imperialismos sugestionados ou explícitos. E é preciso caminhar como em   Galeano, ou, Chico Science:
            Em Eduardo Galeano:
Utopia
                                                                                                         A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. 
                                                  Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. 
                     Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

( Utopia - Eduardo Galeano. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase/ODczMTQ/)

         
             Em Chico Science:  “Um passo à frente e você não está  mais no mesmo lugar.” (Disponível em: http://pensador.uol.com.br/autor/chico_science/)
            Caminhar...nos tira do lugar! Desloca! É preciso perceber a força do movimento e do gesto de caminhar. Não se caminha igual, mas se caminha junto, há velocidades e recuos nos passos, não cessar a jornada irá nos levar a algum lugar. Que seja melhor que este. Porque ficar parado? Se até parado continuamos a ter pés que se agitam dentro dos sapatos...
            A ditadurocracia-polvo, que é o poder da ditadura travestida de  forma democrática,  esquece que até o polvo, sem pés, caminha sobre as águas. Milagre? Não. Natureza de polvo.

Alba Ferreira.







[1] Pussy Riot é uma banda de punk rock feminista russo. Ao encenar uma performance crítica, em março de 2012, durante um concerto improvisado e não autorizado, na Catedral de Cristo Salvador de Moscou, foram presas e acusadas ​​de vandalismo motivado por intolerância religiosa. Seu julgamento começou no final de julho. Em 17 de agosto de 2012 foram condenadas a dois anos de prisão. Advogados do grupo declararam que as circunstâncias do caso reavivaram a tradição da era soviética do julgamento farsa, isto durante a presidência de Vladimir Putin. As três integrantes foram condenadas por vandalismo motivado por ódio religioso. Suas roupas usuais são vestidos de verão em cores vivas, com seus rostos sempre cobertos por balaclavas (gorros coloridos). http://pt.wikipedia.org/wiki/Pussy_Riot
[2] Em o livro Outroso - um outro mundo, a escritora Graciela Montes,  conta a história de jovens envolvidos na construção de Outroso: um outro mundo. Esta novela fala sobre opressão e resistência, criando uma metáfora para expressar a situação vivida pela Argentina durante a vigência do regime militar ditatorial.
[3] Conferir o documentário Brad – uma noite a mais nas barricadas. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fdcQ4-QgKU4http://www.youtube.com/watch?v=sgKwQ6AQfvw, http://www.youtube.com/watch?v=tb5O1d-bP30
[4] A este respeito indicamos a leitura da obra Occupy. Conferir o link a seguir: 
http://boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-216-8
[5] A marcha pode ser vista em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=uGngDOMbLzQ 






Sou da tribo

Sou da tribo
descendente de Camões,
Cervantes.

Faço do meu canto
uma luta,
um post,
uma escritura

guerreiam 
sendo minha voz,
em inquietação diante do mundo,
e como ela se afigura,

 papel e lápis,
uma página
ou
    tela
ou 
página virtual

não posso deixar em branco
preencher
preencher
preencher
com escrita e existência
o possível e o sonhado
da vida

contando com as musas decisivas,
quase Tágides,
minhas sereias negras da Baia de Guanabara,
fadas,
borboletas,
seres que me habitam,

tendo como valor o clown como um Quixote
e a realidade cruel dos moinhos de vento,
que, de ameaça
tornam-se: 
minha  realidade criada.



Alba Ferreira.

terça-feira, 7 de maio de 2013


CONTO: Pintando um horizonte


Pintando um horizonte

Eu tenho habilidade de fazer histórias tristes
Virarem melodia vou vivendo o dia-a-dia
( Chorão/Charlie Brown Jr/ Música:Senhor do tempo)
Não se pode escrever nada com indiferença.

            Seus olhos tão azuis. Azuis da cor do mar. É um clichê comparar a cor dos teus olhos ao mar? Que seja! A Vida é um clichê dela mesma que ultrapassa o senso comum, o entendimento mais entendido e, com seus clichês, nos surpreende. A morte não é um deles? A vida...ah, a vida...
            Teus passos são igualmente azuis na minha memória, agora. Tua vida tinge de cores os nossos dias afora nas pequenas e grandes lembranças.
            A menina que você é faz ver minha própria infância. Os filhos fazem isto, sim! Mas sou seu pai, sua mãe é sua mãe e você nossa criança, nossa obra; uma obra da vida em cores, esboços, desenhos, palavras como pinturas, quadros.
            Teus olhos no horizonte nos sorriem enquanto escrevo. Eu sorrio de volta. Tua lembrança é boa e doce. E me faz te querer aqui. Distraio-me da tristeza que pode acompanhar tal pensamento para reunir: cartas, desenhos, bilhetes, conversas virtuais, um conselho, a educação passada diariamente, as trocas, as pequenas queixas, decepções, carinhos, cuidados: o amor entre pais e filhos. Agora, tudo isso é nossa história em balanço afetivo- concluo- com o peito repleto de afeto. A saudade a invadir...O esquecimento não tem vez. Não pode ter, diante do amor com que nos amamos.
            O dia de tua partida: um descuido?  Não, mas uma fatalidade como acontecimento inexprimível, entre a perplexidade e a dor da constatação da perda: uma realidade dura; cruel.A cena com que me deparo, aconteceu. Você, a banheira e o banheiro de ar irrespirável... Mas antes de me dar conta disto, minha agitação por instantes, já sem possibilidade de ajudar, de fazer algo, diante do que nos pegou, e pega a todos nós, sempre, independente das condições em que chega, desprevenidos, pensa em fazer algo, para logo em seguida, saber ser vã qualquer tentativa.
            A morte como surpresa estarrecedora. Eu, ali, pequeno, impotente, mais que fragilizado, sinto-me ultrapassado por uma lança do destino que me cinde em dois. De um lado um pai com a disposição para que fazer, se pudesse, o que fosse preciso para salvar-te, caso isto fosse possível, desejoso do impossível, de um golpe de sorte que te livrasse do mal, e, de outro lado, um ser desamparado, diante da perda e marcado, de antemão, por uma dor que passaria a morar em mim (a dor que não deve ocupar o lugar que é seu em nós!).
            Vejo você. Seus olhos miram o nada. A cor da água onde você está é transparente como eles. Não lembram o azul de antes. Você não está no mar. As águas são outras. Não há brisa ou sol. Tudo é artificial: o ar, o calor, a água aquecida. E tenho que te salvar, ainda assim. Te retiro da água. Te devolvo ao azul.
            Neste instante, estamos eu, você e sua mãe diantes de uma praia. O coração do mar se abre para nós. As ondas são calmas, com vento bom e ameno; você caminha na areia. A espuma das ondas acaricia teus pés. Teu rosto recebe o calor aquecido de um sol que te imprime vida à face. Você fecha os olhos e sorri. E eu sinto que estamos onde éramos para estar, juntos, no lugar que você escolheu.
            Você, então, caminha em direção às ondas dando-nos as mãos, de olhos fechados. Os três estão, entre a água, a areia e o sol. Você solta, por um instante, nossas mãos para um mergulho. E quando se levanta, teus olhos são novamente o mar.
            O que vivemos juntos, cada passo teu, agora lembrado, tem esta cor do céu, do mar, dos seus sonhos, do nosso lugar. E no horizonte, como tela, esses contornos, essa configuração de azul que nos une, para sempre, em amor, entre lembranças e saudades, e, como conforto, teu sorriso impresso nele.
A. Ferreira.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Mini-conto: Brincadeiras


Brincadeiras

            Domingo passado: eu trabalhando minha escrita, meus textos e Nando vendo algo na tv. Por duas vezes tocam a campainha e correm. Nando reclama. E eu rindo, resolvo escrever o seguinte bilhete, em caso de tocarem mais vezes:
            "Eu adorava brincar de apertar a campainha quando era pequena, então, ok!
Depois só compre duas pilhas palitos para continuarmos com a campainha e a brincadeira."
            Justo não? E, além disso, vá lá saber para quem era o meu bilhete? Para criança que brinca, e só; para criança-adulto, que faz sem intenção alguma de brincar, para os adultos-crianças que, imaturos, resolvem encher a paciência de alguém nesse dia-tédio que pode ser o domingo, ou, para adulto-criança que não cresceu e, de repente, precisou achar um meio de se distrair, ou mesmo, velhinho sem nada para fazer procurando ocupar-se: esses dois últimos tipos também considero que estão a tentar, de algum modo, brincar.
            Então, seja para quem for endereçado o meu bilhete: o recado está dado, para as devidas brincadeiras.

Alba Ferreira

Conto: No noticiário - 2 parte


A aceitação – pensou . Como negar a morte? E ela, de fato, sentia-se morta. Dentro dela já não havia a alegria de antes, a amizade e o amor haviam se tornado lembranças que já faziam parte dela, sim, e que ela carregaria para onde quer que ela fosse. O agora, é que era um vazio sem devir e, então, assentiu com a verdade de sua nova condição: a morte com que se deparara em frente a uma TV.
            O antes, parou para relembrar, os dias em que chegava em casa, após o trabalho, no apartamento em que morava, só ela e sua gata, e em como as duas gostavam de ficar juntas, lado a lado, com a segurança e a companhia uma da outra. Ela ganhava e fazia carinhos e sorria um riso inocente que parecia que estaria em sua boca para sempre, a durar pela eternidade. Os momentos felizes eternizando-se em instantes na memória, mas, o destino brinca com as pessoas e com as gatas – ela concluiu- e separou as duas.
            Era bom antes acordar com sua amiga ao seu lado, chamando-a à vida, roçando os bigodes, com delicadeza, e um miado ou outro, para que ela despertasse. Tomavam o café da manhã juntas, na varanda, com o sol ameno dos dias de outono ou primavera; ou ficavam debaixo das cobertas e mantas, na cama, em dias frios de inverno. No verão buscavam aproveitar a brisa da noite de uma janela ou outra, ou a cama era arrumada com lençóis macios e o ar condicionado ligado enquanto uma lia e a outra, sempre por perto, esperando para velar o sono da outra, quando ele chegasse, para depois dormir, também, a seus pés.
            Este era o presente de antes. Presente, esta palavra que agora só fazia sentido, quando ela lembrava o passado, quando ela pegando sua gata no colo, como a uma filha, dizia: - Eu nunca imaginei ter uma gata como você!-feliz com tanto amor, amizade e carinho. Presentes da vida. E como uma criança que ganha um presente inesperado que a faz sentir-se grata a ponto de cuidar dele até tornar-se adulta, assim ela buscava agir. Assim, ela pensou que fosse acontecer: o amor durar muitos anos, a companhia estender-se no tempo, uma junto da outra. E não desta forma, na distância.
            A amizade não é um brinquedo. O amor também não, e muito menos a morte. Esta sua realidade de agora: saber disto, e, ainda, que não era mais uma criança, que enfrentar a perda fazia parte de sua história, quisesse ela ou não, fazendo com que experimentasse uma outra, e nova perda, a da inocência, última, derradeira, diante da vida, vendo-se como um ser adulto a quem  só resta esperar, diante da promessa da morte iminente, como um porvir.
            E este futuro, agora, era o seu tempo, sua realidade. Ela sabia estar morta. E ela não via sentido em achar esta constatação estranha, ou absurda, mas, algo possível, aceitável, um fim que chegara para se instalar sob sua consciência, já que seu corpo se encontrava em algum lugar recolhido e quieto,  depois de desamparado, exposto, abandonado e noticiado pela mídia, que perguntava se alguém perdera um parente ou conhecia alguém com aquelas características, que buscasse identificá-lo,numa convocação quase apelativa, enquanto ela ria um meio sorriso irônico, de canto de boca, diante da  possibilidade remota disto acontecer, já que ela, a mulher morta, não tinha pais, nem irmão, parentes com quem tivesse convivido e que lembrassem de sua existência, nem filhos marido ou namorado, sequer amigos.
            No trabalho, talvez alguém se lembrasse dela, e era uma possibilidade que a identificassem, caso sentissem sua falta, pois, ela lá não apareceria mais. Mas, não sabia ao certo se haviam prestado atenção nela o suficiente para guardar na lembrança suas características, a partir do  que foi noticiado. - A tatuagem de flor ficava onde? Ela tinha uma tatuagem de flor, não era um pássaro? Qual tatuagem ficava no antebraço e os cabelos dela, que cor que tinham, pois pareciam tão sem definição, tão sem brilho - talvez fossem estes os comentários, pensou- e se caso houvesse comentários - pensou ainda mais, pois nem mesmo sabia se alguém de lá ouviu a notícia, se havia assistido a TV ou se inteirado desta notícia a ponto de ligarem a sua morte.
            E o que ela faria agora que sabia ser esta a sua história final? Pensou que não era tão ruim ter essa consciência e decidiu o que fazer. Há dias ela se sentia vazia, como se não estivesse mais aqui e começou a entender que sua vida já não fazia parte dela: ela partida, seu corpo longe de sua vida, sua vida longe de seu corpo, era preciso fazer algo a respeito. E foi, assim, que ela decidiu agir: iria juntar-se novamente; juntar seus pedaços. Ela iria até o local onde estava o seu corpo. Na reportagem disseram que se ninguém o identificasse, ele seria enterrado como indigente e que seu corpo estava no IML da cidade – era o que bastava a ela saber.
            Foi até lá. Uma funcionária veio atendê-la: – A senhora deseja o que? E ela respondeu: – Eu estou morta. O corpo da mulher que está aí dentro, sou eu, só vim me juntar a ela.
            A funcionária ficou assustada e viu que a mulher não parecia estar brincando, então, até mesmo para certificar-se que não se tratava de uma visão, delírio ou fantasma, chamou um outro funcionário, que chamou outro, que chamou o médico legista de plantão.
            O médico talvez por ter sido acordado não sabendo se sonhava ou estava acordado, de início só observou a mulher enquanto ouvia o relato dos funcionários e da funcionária que primeiro falou com ela. E, depois de alguns minutos, o tempo de ir e voltar com seu estetoscópio e demais equipamentos, a examinou e deu sua sentença, cético e um pouco curioso diante da expressão de verdade que habitava a face da mulher: - A senhora está viva, pulsação normal, pressão arterial também, um coração batendo. Então outro funcionário apresou-se em perguntar, intervindo, em tom mais compreensivo, buscando compreender o que se passava para, talvez, para mais tarde, poder contar aos outros o início, meio e fim dessa história: - A senhora veio identificar alguém, foi isso? E ela não entendia...como podia ser? Ela não se sentia viva! Como podia estar viva? Porém, um médico acabara de atestar isto na presença de outras pessoas. O que fazer, então?
            E pensou: Vou ter de dar um jeito! E respondeu ao funcionário, que a fitava com o queixo na mão, numa expressão de pena e vontade de saber logo do que se tratava aquilo,  que viera identificar a mulher do noticiário. E só assim conseguiu que a levassem até ela.
            Quando avistou a mulher estendida, seu corpo morto, durante alguns instantes a vertigem, depois a firmeza para ter de encarar a realidade que estava estampada na sua frente, naquele corpo, naquele lugar. A mulher não era ela. Sua respiração acelerou-se, ofegante como se fosse chorar, como se chorasse ao contrário, de fora para dentro, um choro mudo e silencioso, sem tradução em lágrimas. E então, ouviu uma voz: - A senhora a reconhece?- nem olhou para ver quem disse isto, se o médico, se algum funcionário. E entre espanto e surpresa consigo mesma ela disse: - Não. Não sou eu. E saiu correndo dali.
            Lá fora parou uns instantes, respirou o ar urbano a que já estava acostumada; viu os carros, as pessoas passando na rua. Ela estava, de fato, viva?! Sim. O que faria agora? E pensou que, em certos momentos, a vida poderia ser tão difícil como a morte. Ela e aquela mulher lá dentro, tanto em comum.
                                                                                                                     Alba Ferreira.

Conto: No noticiário - 1 parte


 No noticiário
       baldio é meu terreno e meu alarde (Legião Urbana)

            Ela escutava a TV. Sentada no sofá, havia interrompido algo que fazia em seu computador e que a estava deixando exausta.
            Ela mora só. Antes com ela, uma gata, sua única e verdadeira amiga. Agora só a solidão da perda, a necessidade de superar, já que sua gata morreu a cerca de um mês, e a raiva muda por não entender o porquê um ser amado se vai, ela que nunca aceitara a impossibilidade de fazer algo diante da morte, esta sentença que não dialoga conosco. Se fosse perguntada, ali,  sentada, inerte, olhando para um aparelho de TV e pensando como aceitar mais esta perda, ela que já passara por outras:  sua avó, seu pai, um tio querido,algumas pessoas que admirava, amigos, diferentes perdas, o que ela, de fato,  desejaria diante da mais recente, ela diria que gostaria que a vida fosse como antes. Com o amor que tinha.
            Dizem que os gatos escolhem as pessoas e não o contrário. Entre elas havia uma combinação, ambas aceitaram, olhando-se, olhos humanos nos olhos felinos, uma a outra, a aderir ao amor incondicional. Esse tipo de escolha que parece ser oferecida aos seres num instante, que dura um piscar de olhos, ou um olhar, e, se os dois seres aceitam, há amor envolvido.
            Foi o que aconteceu ente ela e sua amiga gata.
            Mas ali, diante da TV , ela sabia, não tinha esta possibilidade de escolha. E sentia sua vida de agora diferente, mais solitária, vazia. Passaria um dia; a dor amenizaria, um dia. O esquecimento ajudando a memória a não adoecer. E foi vendo e ouvindo o noticiário com maior atenção que uma notícia, em particular, chamou-lhe a atenção: uma mulher havia sido encontrada morta, num terreno baldio. De início a comoção, mas nenhuma surpresa, afinal de contas, tantas mulheres assassinadas por dia no país que é o seu...O que despertou sua atenção foi quando o repórter descreveu as características da mulher, ainda não identificada: a idade aproximada, o tipo físico mediano, a cor da pele, dos cabelos e, mais, as três tatuagens que a tal mulher carregava em seu corpo: uma borboleta no pé esquerdo, uma frase no antebraço esquerdo e flores no direito.
            Ela acabou de ouvir a descrição estarrecida e ficou ainda mais, com o pensamento que lhe veio à cabeça: – Esta mulher sou eu!Eu estou morta!
Uma espécie de pânico poderia ter invadido o seu interior, como já ocorrera em certas situações, mas nada se assemelhava a esta situação, ou melhor, a esta constatação.
Uma calma, como uma rendição, tomou-a, e ela deu um longo suspiro. O que faria, a partir de agora, então? A partir desta descoberta?
Continua...

Mini-conto: Fênix com tesoura.


Fênix com tesoura.


os cortes que a vida me deu/ foram aprendizados que eu tive/ hoje a vida me cortou outra vez/ a vida vive testando meus limites... (Chorão-CBJ) 

Alta noite: precisando renascer, depois de uma perda. Olho no espelho, não sou mais a mesma sem ela. É preciso mudar algo em mim que me assegure aguentar-me, que me faça prosseguir. Diante do espelho madeixas longas, olho para elas, me fixo nelas:

- Tesoura, preciso de tesoura! 

E corto o que não sou mais, já que ela não mais estará aqui. Agora que tudo é diferente. Corto os fios, não os que nos ligavam, só os do cabelo. Muitos fios, muitos. A vida, de antes, em fios que se desprendem com o movimento aleatório da tesoura.

O cabelo, agora, é curto. A vida é curta. E a vida em fios novos, diante de um novo corte. 


Alba Ferreira.