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terça-feira, 23 de abril de 2013

Conto: No noticiário - 2 parte


A aceitação – pensou . Como negar a morte? E ela, de fato, sentia-se morta. Dentro dela já não havia a alegria de antes, a amizade e o amor haviam se tornado lembranças que já faziam parte dela, sim, e que ela carregaria para onde quer que ela fosse. O agora, é que era um vazio sem devir e, então, assentiu com a verdade de sua nova condição: a morte com que se deparara em frente a uma TV.
            O antes, parou para relembrar, os dias em que chegava em casa, após o trabalho, no apartamento em que morava, só ela e sua gata, e em como as duas gostavam de ficar juntas, lado a lado, com a segurança e a companhia uma da outra. Ela ganhava e fazia carinhos e sorria um riso inocente que parecia que estaria em sua boca para sempre, a durar pela eternidade. Os momentos felizes eternizando-se em instantes na memória, mas, o destino brinca com as pessoas e com as gatas – ela concluiu- e separou as duas.
            Era bom antes acordar com sua amiga ao seu lado, chamando-a à vida, roçando os bigodes, com delicadeza, e um miado ou outro, para que ela despertasse. Tomavam o café da manhã juntas, na varanda, com o sol ameno dos dias de outono ou primavera; ou ficavam debaixo das cobertas e mantas, na cama, em dias frios de inverno. No verão buscavam aproveitar a brisa da noite de uma janela ou outra, ou a cama era arrumada com lençóis macios e o ar condicionado ligado enquanto uma lia e a outra, sempre por perto, esperando para velar o sono da outra, quando ele chegasse, para depois dormir, também, a seus pés.
            Este era o presente de antes. Presente, esta palavra que agora só fazia sentido, quando ela lembrava o passado, quando ela pegando sua gata no colo, como a uma filha, dizia: - Eu nunca imaginei ter uma gata como você!-feliz com tanto amor, amizade e carinho. Presentes da vida. E como uma criança que ganha um presente inesperado que a faz sentir-se grata a ponto de cuidar dele até tornar-se adulta, assim ela buscava agir. Assim, ela pensou que fosse acontecer: o amor durar muitos anos, a companhia estender-se no tempo, uma junto da outra. E não desta forma, na distância.
            A amizade não é um brinquedo. O amor também não, e muito menos a morte. Esta sua realidade de agora: saber disto, e, ainda, que não era mais uma criança, que enfrentar a perda fazia parte de sua história, quisesse ela ou não, fazendo com que experimentasse uma outra, e nova perda, a da inocência, última, derradeira, diante da vida, vendo-se como um ser adulto a quem  só resta esperar, diante da promessa da morte iminente, como um porvir.
            E este futuro, agora, era o seu tempo, sua realidade. Ela sabia estar morta. E ela não via sentido em achar esta constatação estranha, ou absurda, mas, algo possível, aceitável, um fim que chegara para se instalar sob sua consciência, já que seu corpo se encontrava em algum lugar recolhido e quieto,  depois de desamparado, exposto, abandonado e noticiado pela mídia, que perguntava se alguém perdera um parente ou conhecia alguém com aquelas características, que buscasse identificá-lo,numa convocação quase apelativa, enquanto ela ria um meio sorriso irônico, de canto de boca, diante da  possibilidade remota disto acontecer, já que ela, a mulher morta, não tinha pais, nem irmão, parentes com quem tivesse convivido e que lembrassem de sua existência, nem filhos marido ou namorado, sequer amigos.
            No trabalho, talvez alguém se lembrasse dela, e era uma possibilidade que a identificassem, caso sentissem sua falta, pois, ela lá não apareceria mais. Mas, não sabia ao certo se haviam prestado atenção nela o suficiente para guardar na lembrança suas características, a partir do  que foi noticiado. - A tatuagem de flor ficava onde? Ela tinha uma tatuagem de flor, não era um pássaro? Qual tatuagem ficava no antebraço e os cabelos dela, que cor que tinham, pois pareciam tão sem definição, tão sem brilho - talvez fossem estes os comentários, pensou- e se caso houvesse comentários - pensou ainda mais, pois nem mesmo sabia se alguém de lá ouviu a notícia, se havia assistido a TV ou se inteirado desta notícia a ponto de ligarem a sua morte.
            E o que ela faria agora que sabia ser esta a sua história final? Pensou que não era tão ruim ter essa consciência e decidiu o que fazer. Há dias ela se sentia vazia, como se não estivesse mais aqui e começou a entender que sua vida já não fazia parte dela: ela partida, seu corpo longe de sua vida, sua vida longe de seu corpo, era preciso fazer algo a respeito. E foi, assim, que ela decidiu agir: iria juntar-se novamente; juntar seus pedaços. Ela iria até o local onde estava o seu corpo. Na reportagem disseram que se ninguém o identificasse, ele seria enterrado como indigente e que seu corpo estava no IML da cidade – era o que bastava a ela saber.
            Foi até lá. Uma funcionária veio atendê-la: – A senhora deseja o que? E ela respondeu: – Eu estou morta. O corpo da mulher que está aí dentro, sou eu, só vim me juntar a ela.
            A funcionária ficou assustada e viu que a mulher não parecia estar brincando, então, até mesmo para certificar-se que não se tratava de uma visão, delírio ou fantasma, chamou um outro funcionário, que chamou outro, que chamou o médico legista de plantão.
            O médico talvez por ter sido acordado não sabendo se sonhava ou estava acordado, de início só observou a mulher enquanto ouvia o relato dos funcionários e da funcionária que primeiro falou com ela. E, depois de alguns minutos, o tempo de ir e voltar com seu estetoscópio e demais equipamentos, a examinou e deu sua sentença, cético e um pouco curioso diante da expressão de verdade que habitava a face da mulher: - A senhora está viva, pulsação normal, pressão arterial também, um coração batendo. Então outro funcionário apresou-se em perguntar, intervindo, em tom mais compreensivo, buscando compreender o que se passava para, talvez, para mais tarde, poder contar aos outros o início, meio e fim dessa história: - A senhora veio identificar alguém, foi isso? E ela não entendia...como podia ser? Ela não se sentia viva! Como podia estar viva? Porém, um médico acabara de atestar isto na presença de outras pessoas. O que fazer, então?
            E pensou: Vou ter de dar um jeito! E respondeu ao funcionário, que a fitava com o queixo na mão, numa expressão de pena e vontade de saber logo do que se tratava aquilo,  que viera identificar a mulher do noticiário. E só assim conseguiu que a levassem até ela.
            Quando avistou a mulher estendida, seu corpo morto, durante alguns instantes a vertigem, depois a firmeza para ter de encarar a realidade que estava estampada na sua frente, naquele corpo, naquele lugar. A mulher não era ela. Sua respiração acelerou-se, ofegante como se fosse chorar, como se chorasse ao contrário, de fora para dentro, um choro mudo e silencioso, sem tradução em lágrimas. E então, ouviu uma voz: - A senhora a reconhece?- nem olhou para ver quem disse isto, se o médico, se algum funcionário. E entre espanto e surpresa consigo mesma ela disse: - Não. Não sou eu. E saiu correndo dali.
            Lá fora parou uns instantes, respirou o ar urbano a que já estava acostumada; viu os carros, as pessoas passando na rua. Ela estava, de fato, viva?! Sim. O que faria agora? E pensou que, em certos momentos, a vida poderia ser tão difícil como a morte. Ela e aquela mulher lá dentro, tanto em comum.
                                                                                                                     Alba Ferreira.

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